terça-feira, 30 de março de 2010

MADRE DEUSAS


No princípio, eram as Deusas. E as Deusas só foram destronadas com o advento das religiões monoteístas, que admitem um só deus, masculino. Com a difusão do cristianismo, as antigas deusas são banidas do imaginário popular.
Quando assim iniciamos esta abordagem, demonstramos, logo de início, as mudanças que ocorreram e que continuam, inexoravelmente, ocorrendo no mundo. Ao contrário do que a vida imediata e o olhar para o mundo sem detenção apontam, nem sempre fomos monoteístas e, consequentemente, muito menos a humanidade nasceu cristã.
No princípio eram as Deusas. Esta afirmação é reveladora de um profundo paganismo, porque antes de qualquer outra definição, o mundo nasceu pagão. Deus nasceu muito tempo depois do homem e a sua história não nos é desconhecida. Todavia, se afirmamos o nosso paganismo e a nossa conversão, jamais poderemos negar a nossa religiosidade.
Conforme Eliade, a primeira definição que se pode dar do sagrado, é que ele se opõe ao profano. Dado que reconhecemos o profano e aceitamos que o mundo, hoje, se caracteriza pela sua preponderância, apesar da enorme quantidade de igrejas e de cultos, não podemos identificá-lo senão na sua contraposição ao sagrado. Por outro lado, também hoje já não podemos deixar de aceitar a idéia de que o homem é religioso, porque, conforme Derrida, a fé é uma parte da razão. Portanto, ver o mundo repartido nestas duas dimensões pode ser uma forma singular e necessária de o ver e de o compreender. E, de acordo com os estudos sobre a História das religiões, desde sempre em todas as culturas esta dimensão da existência humana foi contemplada.
Em O Sagrado e o Profano: a essência das religiões, Eliade afirma que o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como qualquer coisa diferente do profano. Ele se manifesta a partir de uma hierofania, que nada mais é do que algo de sagrado se nos mostra através de uma árvore ou de uma pedra, ou ainda, da encarnação de Deus em Jesus Cristo, que é, para um cristão, a mais importante hierofania. O que é interessante compreender é que o sagrado se manifesta num universo profano como um ganz andere. Esta manifestação é, para um profano, totalmente alheia. No entanto, para quem vive uma experiência religiosa, toda a Natureza é susceptível de revelar-se como sacralidade cósmica.
Sentir ou viver a religiosidade está distanciada da forma de ser e de estar no mundo do homem des-sacralizado, que se caracteriza pela crença no poder da técnica e pelo seu pragmaticismo. Isto implica na sua perdição num mundo individualista e desprovido de força anímica. Por outro lado, isto leva à comprovação de que quanto mais o homem avança para um mundo tecnologizado mais ele demarca o seu distanciamento de uma experiência religiosa total, ou seja, de viver o totalmente outro. E se, por exemplo, lembrarmos o cinema de Bergman, mais sentimos um vazio incomensurável que somente a busca pelo sagrado pode amenizar. O seu cinema impregnado de religiosidade e de misticismo acenam para a condição humana como para a busca do transcendente.
Fazendo um retorno ao período mito-poético, nós encontramos Hesíodo e a sua Teogonia. Dele vem esta exposição do mundo:

Em primeiro lugar, existiu, realmente o Caos. A seguir Gea, de amplo peito, sede sempre firme de todos os imortais que ocupam o cimo do nevado Olympo.
(…)
Gea primeiramente deu a luz ao estrelado Urano, semelhante a ela mesma, para que a protegesse por todas as partes com a finalidade de ser assento seguro para todos os deuses bem-aventurados.

Gea é a mãe inaugural, ou seja, a que está na origem dos Deuses e dos homens que tentarão repetir o seu exemplo. Primeiramente, o Caos, depois Gea, que gerou Uranos, o Céu Estrelado, encarregado de a proteger por todas as partes, pois, como mãe, ela precisava garantir a segurança dos Deuses que ainda viriam. Ela deitou-se com Uranos, dando vida a deuses terríveis e medonhos, garantindo aos que sobrevivessem ao ato indigno do pai a partilha do Cosmo. Este casamento constitui-se como a primeira hierogamia.
Homero, apesar de não a enfatizar como Hesíodo, dedica-lhe um hino.

É a Terra que eu cantarei, mãe universal com profundas raízes, avó venerável que nutre no seu solo o que existe…És tu quem dá a vida aos imortais, como és tu quem lhes tira a vida…Bem aventurado aquele a quem tu honras com a tua benevolência! Para ele a vida é uma gleba de boa colheita, nos campos os seus rebanhos prosperam e a sua casa enche-se de riquezas.

Portanto, a Terra é reconhecida como uma entidade sagrada, como hierofania primeira. E assim ela se apresenta em praticamente todas as culturas pagãs, que não se omitem em falar também da sua fecundidade. Emblemático é o símbolo com que Cronos mutila seu pai Uranos: uma foice utilizada para cortar, nos campos, os cereais, associando Gea à fecundidade e à agricultura, o que viria depois da sua compreensão religiosa. A Terra ou o Todo, revelou-se mais que tudo na sua função primeira de fecundar, a ponto de os armênios acreditarem que ela é o ventre materno donde saíram os homens ou de os peruanos acreditarem que descendem das montanhas e das pedras. É por isso que, antes de ser considerada a Deusa-Mãe, divindade fertilizadora, ela se fez Mãe, Tellus Mater.
Quanto ao lugar da mulher neste Cosmo sacralizado, admite-se, normalmente, que a agricultura tenha sido uma descoberta feminina. A mulher desde sempre foi reconhecida pelo seu espírito observador, e sempre, ao contrário do homem, com tendência para a fixação no espaço, devido às suas tarefas domésticas. Esta imposição, que não se explica em que momento se definiu, desenvolveu, nela, o espírito de observação e a contemplação da Natureza: daí que ela tenha sido, segundo estudos, a primeira a acompanhar o movimento das estações, das flores, dos frutos e das sementes. Mas não é só isto, segundo Eliade, ter descoberto que o homem pode intervir na Natureza, plantando e colhendo, conforme a sua manipulação, deve-se ao fato de ela estar ligada a outros centros de fecundidade cósmica – a Terra e a Lua. Foi esta vinculação e concentração que fizeram com que a agricultura fosse possível e que o alimento pudesse ser distribuído entre os homens.
A relevância da mulher como ser fecundo e com poderes de intervir na Natureza, no mundo Ocidental, durou até que o homem criasse as máquinas e pudesse, ele, manipular, fecundar. A mecanização de todas as coisas é a evidência maior da des-sacralização do Mundo. É num mundo des-sacralizado, cristão e masculino que a mulher perde, gradativamente, o seu valor no mundo, e que ela tenta até mesmo por vias tortas, resgatar. Este resgate, sob outros contornos, não perdeu de todo o seu teor místico e demiúrgico.
A experiência de se viver num mundo des-sacralizado é algo que se pode acompanhar através da história. Foi com o homem moderno que o homem alcançou o seu maior distanciamento do Cosmo e passou a viver uma existência profana. Todavia, como a história é marcada por descontinuidades, pode-se dizer que a Einstein coube iniciar a destruição da barreira erigida pela Modernidade, sustentada na Aufklärung, que cavou profundamente o fosso entre a religião e a ciência. Com Einstein foi concedido ao cientista o direito de poder ser religioso.
Quando acompanhamos o nascimento e o desenvolvimento das ciências, aceitamos que a ruptura entre os dois tipos de conhecimentos foi necessária, porém, foi uma necessidade que já supriu a si mesma. Hoje demandamos da reconciliação ou de retornarmos à essência do re-ligare, para, então, estabelecermos o diálogo com todos os saberes e compreendermos a unidade cósmica. A proposta é que o re-ligare seja na perspectiva do Cosmos como totalidade e não como o restabelecimento de um pacto que somente afasta o homem do mundo. Seria mais ou menos o reconhecimento da sacralidade cósmica e, portanto, exigente de uma transmutação dos valores.
Acompanhando o movimento ou o revolvimento que hoje experimentamos, inclusive com o abandono inescapável do homem, que se configura desde a primeira palavra de Nietzsche, é que podemos ver e tentar compreender a Exposição Madre Deusas, da artista Isabel Magalhães, que se envolve num manto totalmente pagão e, portanto, extremamente sagrado, porque exige uma tentativa de retorno ao universo “primitivo” (por falta de outra expressão). Nesta exposição, a artista nos traz um conjunto de Deusas, que ganham forma através da arte da cerâmica, utilizando como matéria o grês e as mãos da artista, principalmente. É através delas que a matéria ganha forma e se apresenta nas Deusas que se podem ver detidamente como se pudéssemos retornar a um período em que tudo estava pleno de deuses e em que a astúcia do homem não tinha engendrado a notícia da sua queda.
Ainda que não tenhamos a plena consciência da nossa necessidade do sagrado e que ainda nos falte a compreensão do que isto significa, recorramos a arte que se caracteriza por quebrar os tabus, aguçar o espírito e balançar as crenças. É entre Deusas que percorremos o esboço de um Novo Mundo.



Porto, 11 de Março, Primavera, estação absolutamente pagã, de 2007.



Neiza Teixeira
Doutora em Filosofia
neizateixeira@gmail.com
in neizateixeira.blogspot.com

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